Contrastes, sonhos e esperança: o futebol na vida de crianças em Curitiba Separados por 11 quilômetros, dois homens se dedicam a ensinar futebol para as crianças convivendo com extremos da realidade social na capital paranaense

Escolinha Tostão Curitiba (Foto: Monique Silva) 

Carrinho, pipa, pega-pega e esconde-esconde ficam de lado. A bola é a atração principal. É atrás dela que crianças e adolescentes, de dois pontos diferentes de Curitiba, gastam as energias e esquecem de problemas ou facilidades do cotidiano durante a prática do esporte mais amado pelo povo brasileiro. Unidos pelo mesmo sonho - ou parte dele, eles querem ter a chance de, um dia, viver do futebol e transformar a vida de seus familiares. 
Entre riscos e oportunidades, sonhos e ilusões, a realidade fora das quatro linhas é, na maioria das vezes, dura e, principalmente, diferente. Do garoto que deixa o videogame de lado por algumas horas e é levado pelo pai para treinar na escolinha, ao menino que vai bater bola no campo descalço envergando a camisa com o nome de Neymar, para viver a fantasia de ser jogador. As preocupações da escola ou de casa ficam para trás. O fascínio pela bola faz os pequenos esquecerem de todo o resto, ainda que por algumas horas do dia.
Com o futebol como fundo, os garotos se distraem, correm atrás de objetivos e renovam esperanças. Por razões distintas, muitos acabam ficando pelo caminho ou fazem outras escolhas na vida. Quando a bola rola, talentos são lapidados ou descobertos com olhares clínicos, como o de Tostão, ídolo do Coritiba. Há 17 anos ele se junta à esposa para comandar sua escolinha de futebol no Xaxim, que recebe meninos de 5 a 17 anos de várias regiões de Curitiba para treinos dedicados à pratica do futebol em seis categorias. Onze quilômetros longe dali, o verdadeiro contraste: Jorge Jesus Sanches, o "Bodão", tenta driblar as mais variadas dificuldades para oferecer dias melhores a cerca de 80 crianças e adolescentes na perigosa Vila das Torres. Com disposição de sobra e material escasso, ele é o responsável por ensinar a arte da bola aos pequenos da comunidade.
"Sobrevivente" da bola, Tostão lapida talentos e vive dilema com pais 
Tostão brilhou com a camisa Coritiba nos anos 80 e 90 (Foto: Monique Silva)






Luís Antônio Fernandes, o Tostão, começou a jogar bola aos 10 anos, no bairro do Macuco, em Santos, onde nasceu. Dos primeiros passos no juvenil da Portuguesa Santista, despertou o interesse do Santos, que o comprou e lançou no futebol. Depois de um ano e três meses, já estava desfilando seu talento no time profissional, com 17 anos, treinando ao lado de Pelé e companhia. 
Do Peixe, Tostão foi vendido para o Goiás e passou por equipes como Mixto-MT e Cruzeiro até chegar ao Coritiba, onde foi artilheiro, camisa 10 e campeão nos anos de 86 e 89. Atuou ainda no XV de Piracicaba, Inter de Limeira, Rio Branco-PR e Foz do Iguaçu até se aposentar no Sinop-MT, com um total de 280 gols na carreira. Após pendurar as chuteiras, se juntou a outros ex-jogadores na criação de uma escolinha de futebol, mas o projeto não foi para frente. Só no ano 2000 conseguiu inaugurar a sua própria escola, que leva seu nome a cerca de 150 alunos e possui parceria com o Coxa.
Pai de quatro filhos e sem netos, Tostão divide com a esposa Vera e outros nove funcionários, a missão de segunda a sábado organizar treinos, campeonatos, viagens e idas a outros clubes para avaliações, os quais faz questão de acompanhar de perto. Com mais de 20 anos dedicados ao mundo da bola, traz do campo sua principal característica: a disciplina. 
– Desde que eles pisam aqui a gente impõe disciplina e regras. Por exemplo, eles não podem falar palavrão, senão, ficam fora dos campeonatos. Se o menino entra forte em um lance, já tiro de campo na hora – explicou em entrevista ao GloboEsporte.com.
Mesmo adepto ao estilo “linha dura” nos treinos, Tostão também acaba virando amigo dos alunos em momentos de incertezas ou quando surgem problemas em casa.
Ídolo do Coritiba cumprimenta menino em sua escolinha na capital paranaense (Foto: Monique Silva)
– Esses dias um menino sentou do meu lado e começou a chorar, dizendo que os pais estavam separando. Falei que essa fase é difícil, os meus filhos passaram por isso. Você sente eles amuados, dá para perceber de longe. Aí pergunto o que está havendo e, geralmente, eles falam.
A aposta alta e a frustração de pais que não conseguiram virar jogadores são problemas recorrentes na escola de Tostão.
– Criança não me dá problema. O problema são os pais. Nunca fui xingado pelos meninos. Os pais chegam aqui e falam "o meu filho vai ser jogador". Não, ele primeiro precisa vir aqui para se divertir, ter alegria em jogar futebol. Vai ganhar, vai perder, mas é alegria. Já vi pai batendo na cabeça do menino e eu tive que intervir. Fui atrás na esquina. Falei “parou, tá maluco? Se continuar vou chamar a polícia”. Você acha que bater vai fazer o menino melhorar o rendimento? Vai piorar. E quando ele for jogar de novo vai ter medo, vai saber que se errar, vai apanhar. Tem pai que faz isso direto. Eu queria ter uma psicóloga aqui, mas para os pais, não para os meninos.
“Dor de cabeça” para o ex-meia-atacante é lidar com alguns pais que acabam exagerando nas cobranças em relação aos filhos. Para ele, até uma idade, futebol tem que ser diversão.
– Cobrar tão cedo é muito complicado, nem sempre eles estão preparados para isso. Eles não estão prontos, ainda não têm esse perfil. Tem o momento certo para as coisas acontecerem. Os pais querem vitórias, vitórias e vitórias, e não é só isso, não é ganhar medalha e ser campeão, isso é o menos importante. Eles estão aqui para se divertir. O importante é ter alegria em jogar. 
 Tive bons jogadores que passaram por aqui e que viraram bandido, viraram chefe de facções. Treinei um menino que jogava muito, muito mesmo, mas virou traficante e hoje está preso
Tostão, ex-jogador do Coxa
A satisfação de passar ensinamentos da bola e lapidar talentos só se apaga quando Tostão lembra da tristeza em perder alunos para o mundo das drogas e outros acasos da vida. 
– Tive bons jogadores que passaram por aqui e que viraram bandido, chefe de facções. Treinei um menino que jogava muito, muito mesmo, mas virou traficante e hoje está preso. Eu acho que na vida existe o caminho e você faz a escolha. Dos que jogaram comigo lá no Macuco só sobrou eu e mais um. Só eu virei jogador profissional, os outros morreram. 
Quem soube aproveitar bem as oportunidades e conselhos de Tostão é Matheus Carvalho, de 18 anos. Ele passou por todas as categorias na escolinha do mentor, jogando como zagueiro e volante, e hoje é o responsável pelo time sub-07.
–  Ele sabe muito de futebol. O que ele mais me ensinou não foi dentro de campo, mas fora: saber respeitar. O que sou hoje é muito devido a ele. Quando entrei aqui eu era um menino muito agitado, o “terror” na escola. Aqui (na escolinha) eu aprendi a ter disciplina, a respeitar, e que nem tudo era do jeito e na hora que eu queria. Isso foi importante. Ele dizia que, se eu não virasse jogador, que fosse um grande homem – conta o estagiário.
Tostão e aluno Coritiba (Foto: Monique Silva) 
Sonhos, temores e esperança na Vila das Torres
“Paredão, paredão”!
O grito que ecoa no campo surrado entre as ruas Plínio Barroso de Castro e Aquelino Orestes Baglioli anuncia que vai começar mais um treino. A voz firme é de Jorge Jesus Sanches, que comanda treinos de futebol há mais de 20 anos na comunidade Vila das Torres (antiga Vila Pinto), no bairro Prado Velho, em Curitiba. "Paredão", aliás, é o momento em que os times são divididos pelo treinador.
Ex-jogador, ele se divide entre as atribuições de açougueiro com a missão de treinar cerca de 80 crianças da região. Conhecido como “Bodão”, ele arregaça as mangas de terça a sexta-feira. Sem parcerias, junta coletes incompletos, algumas bolas e caminha até o campinho da praça. Voluntariamente, a rotina é basicamente a mesma: comandar atividades para meninos de 8 a 15 anos, com foco para o treinamento da categoria sub-15, que disputa competições pela capital. Além disso, alguns de seus comandados também reforçam os times da Vila, como o União Vila Torres. Recentemente, ele comandou o grupo vice-campeão da Copa Cobrinha, tradicional torneio de Curitiba, um dos quatro que a equipe disputou em 2016. 
Bodão jogou futebol amador na infância e adolescência e sempre teve identificação com a parte tática. Nem mesmo o período em que trabalhou no Japão atrapalhou os planos de se dedicar ao ensino.
Bodão mostra fotos de meninos que treinou desde 1996 (Foto: Monique Silva)
– São 20 anos fazendo isso. Tem filho de moleque que eu treinava que agora vem treinar comigo, com 10, 11 anos, a idade que o pai tinha. E o pai morreu, envolvido com drogas, essas coisas.
Nascido e criado na Vila Torres, Bodão lamenta conviver com situações de perigo que acabam virando algo comum durante os treinos.
– Às vezes a gente está ali, treinando, e passa um de moto, correndo da polícia ou sangrando, faz parte do “show”. Já aconteceu de eu chegar para treinar e ter um cara esticado, que apanhou de alguém. Morto também já aconteceu. Acaba sendo normal esse tipo de situação, não adianta mentir. O que me deixa comovido é que eles (crianças) nem têm reação, já estão acostumados por conviver com isso todos os dias.
Respeitado na comunidade, Bodão relembra histórias que mais envolveram riscos durante treinos entre 2013 e 2015.
– A Vila aqui era dividida e era uma guerra só. Quem era de cima não podia treinar para cá, era uma guerra mesmo. Ninguém subia ou descia. Eu subia e descia, não tinha nada a ver com os problemas. Mas era bala pra cima pra baixo. Teve uma vez em 2014 que estávamos treinando e os tiros rolando. Todo mundo deitou no campo. Em 2015 também foi meio ruim. 
Certa vez, o treinador contou com a ajuda de um preparador físico na escolinha, mas a parceria não durou muito tempo. 
– Ele ficou uma semana me ajudando, mas não deu certo. Um dia ele me disse: “cara, não sei como você aguenta, aqui é um barril de pólvora" - relembra.
 Às vezes a gente está treinando e passa um de moto, correndo da polícia ou sangrando, faz parte do “show”. Acaba sendo normal esse tipo de situação. O que me deixa comovido é que eles nem têm reação, já estão acostumados por conviver com isso todos os dias
Bodão
Entre as dificuldades de ter um local adequado para treinos e materiais, Bodão se entristece quando vê alguns alunos fazendo escolhas erradas e se perdendo pelo caminho.
– Você puxa de um lado, mas três puxam do outro. Você vê crescer e vê morrer. Aqui (nos treinos) eles estão tranquilos, fazendo o que gostam. Problema é depois, em casa, quando saem daqui. A maioria dos moleques o pai é drogado, ou está preso ou morreu...
Problema mesmo, segundo ele, é não ter condições de transporte para disputar campeonatos pela cidade.
– Muitas vezes a gente entra nos campeonatos sem ajuda. E tem taxa de arbitragem, ônibus... mas a gente dá um jeito, um ajuda aqui, outro ali. Teve uma vez, em 2013, no campeonato Cobrinha, tínhamos que chegar às 11h, o ônibus quebrou e mandaram uma ambulância, mas chegamos lá. Já fui de carro, levando os meninos aos poucos, também já fomos de ônibus de linha com a turma toda.
Pai de cinco filhos - e outros 80, Bodão sonha um dia profissionalizar sua escolinha, com horários separados, organizando times para campeonatos de acordo com as idades dos alunos e, claro, com apoio em materiais e equipamentos adequados. Mesmo com a esperança de dar melhores condições às crianças, ele acredita que o trabalho feito em todos esses 20 anos faz bem a ele, não aos meninos.
– Se eu tivesse dinheiro, tipo ganhasse numa loteria, ia organizar bem, arrumaria mais dois ou três professores para me ajudar. O que eu faço ninguém vai fazer. Parece que faz bem para mim do que para eles. Queria começar de baixo, e ir disputar um campeonato top, lá em cima, bem organizado. A ideia eu tenho, falta a verba. A minha ideia era pegar todos e ir treinando. Mas isso é sonho. O que dá para fazer é isso. Mas a sensação é que fica no meio do caminho.
Com Tostão ou Bodão, no país da bola, onde o futebol se traduz como linguagem universal e tem poder de inclusão, a nova geração, mesmo com tantos contrastes, mostra que ainda pode gerar frutos para o esporte mais popular do Brasil.


Bodão Curitiba (Foto: Monique Silva) 

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