Os atletas transformados em ídolos pertencem a um universo que transcende os limites esportivos. A eles é agregado um altíssimo valor de mercado, com a possibilidade da capitalização de marcas sobre a imagem. Isso é praticamente mandatório em uma cultura norteada pelo entretenimento.
É comum vermos chamadas de televisão e propagandas de produtos estreladas por jogadores conhecidos, que acabam se tornando a “cara” de tênis, roupas, bebidas e o que mais for – garantindo contratos às vezes até mais generosos do que o próprio salário do atleta.
Ainda que os esportes representem boa parte da sociedade de consumo, há muitos atletas focados em usar, cada vez mais, sua voz para além das quadras ou anúncios.
Nos Estados Unidos, a NBA é conhecida por ser a mais politizada das ligas, dando espaço para a discussão de temas espinhosos. Embora o ativismo na National Basketball Association exista há décadas, a liberdade de expressão não garante que sempre ouviremos os protagonistas manifestando suas opiniões.
O lendário Michael Jordan, tido como o melhor de todos os tempos, serve como exemplo. Durante a década de 1990, o astro vencia seis títulos com o Chicago Bulls e expandia sua popularidade para o mundo todo. Apesar do renome, sempre preferiu isentar-se de polêmicas.
A estrela da NBA jamais criticou publicamente a Nike, com quem tem um contrato vitalício. A marca já foi duramente questionada por pagar salários baixos a seus funcionários, explorando a mão de obra barata do terceiro mundo, especialmente da Ásia.
Ele também ficava fora de debates raciais. Em 1991, a agressão ao motorista negro Rodney King por policiais brancos de Los Angeles desencadeou uma série de protestos no país. Mas não engajou Jordan, que disse, à época, estar “mais preocupado com seu arremesso”.
Foi criticado por não ter apoiado a candidatura de Harvey Gantt, democrata que tentava ser o primeiro senador negro da Carolina do Norte, onde Jordan cresceu. Foi quando o atleta disse a famosa frase: “republicanos também compram tênis”.
Embora os tempos fossem outros, Kareem Abdul-Jabbar, um dos maiores jogadores da NBA, avaliou que Jordan escolheu colocar os negócios acima da consciência. O ex-pivô, por outro lado, sempre foi muito engajado. Na década de 1970, por exemplo, converteu-se ao islamismo e trocou seu nome de batismo, gerando forte reação.
Colegas de time de Michael Jordan tinham posturas opostas.
Era o caso de Craig Hodges, campeão com os Bulls nos dois primeiros títulos. Ele tentou, sem sucesso, convencer o camisa 23 e o ídolo dos Lakers, Magic Johnson, a boicotarem as finais daquele ano em protesto ao espancamento de King cometido meses antes. Em 1992, criticou publicamente Jordan pelo silêncio sobre racismo na NBA, por causa da escassez de donos de times e técnicos negros.
A história vazou para a imprensa, enterrando a carreira de Hodges. Ele foi dispensado do Chicago Bulls, e nenhum outro time o contratou, apesar da experiência e da habilidade nas bolas de três pontos.
O atual técnico tricampeão do Golden State Warrios, Steve Kerr, coleciona quatro títulos como jogador – três deles com os Bulls de Michael Jordan.
Ele cresceu em uma família política e socialmente engajada. Seus avós deixaram os Estados Unidos para trabalhar como missionários no Oriente Médio. Steve nasceu em Beirute, capital do Líbano, onde seu pai, Malcom Kerr, foi presidente da Universidade Americana de Beirute. Embora a cidade fosse um polo cosmopolita no Mediterrâneo, no começo da década de 1980, era palco incessante de tensões.
O Líbano estava no meio de um cabo de guerra entre Israel e Síria. O país vivia ainda uma guerra civil agravada pelo conflito religioso entre cristãos e muçulmanos.
Entre idas e vindas pelos continentes, Steve Kerr estava na América do Norte jogando basquete universitário no Arizona quando o pai foi assassinado, em 1984. O diplomata foi vítima do terrorismo, morto a tiros por jihadistas que formariam pouco tempo depois o Hezbollah.
Assim, verbalizar opiniões e analisar fatos por uma perspectiva multilateral dialoga com as raízes do hoje técnico dos Warriors. Steve Kerr lembrou-se, em entrevista para o "The New York Times", por exemplo, de quando Phil Jackson, técnico do Chicago Bulls durante todos os títulos da franquia, discutia no vestiário o controle de armas.
“Ele perguntou aos jogadores quantos ali tinham armas. Depois perguntou quantos sabiam que se alguém tivesse uma arma em casa seria mais provável haver uma fatalidade. Foi uma verdadeira discussão, com caras defendendo que deviam ter algum nível de proteção, porque eram vulneráveis de certa maneira”.
A conversa aconteceu na metade dos anos 1990. Pode-se dizer que, de lá para cá, o universo esportivo abriu ainda mais espaço para o debate de temas sensíveis. Partidas da NBA viraram por inúmeras vezes local de protestos.
Para honrar a comunidade latina em protesto contra a controversa lei de imigração do Arizona, sancionada em 2010, os jogadores do Phoenix Suns usaram a camisa temática na qual se vê “Los Suns” naqueles playoffs. LeBron James, Kobe Bryant, Derrick Rose e outros astros do basquete usaram camisetas com os dizeres “eu não consigo respirar” em 2014, em alusão ao assassinato de Eric Garner, afro-americano morto asfixiado por um policial em Nova York.
No mesmo ano, jogadores do Los Angeles Clippers viraram as camisas do avesso como boicote ao então dono da franquia, Donald Sterling, responsável por comentários racistas que culminaram no seu banimento da liga.
Em 2017, após o Golden State Warriors vencer o título, os jogadores se recusaram a fazer a tradicional visita à Casa Branca, em sinal de desaprovação ao governo do presidente Donald Trump. Antes disso, a estrela do Minnesota Timberwolves, Karl-Anthony Towns, usou um tênis customizado com a frase “love trumps hate” ("O amor supera o ódio"), em um trocadilho crítico à resposta esquiva de Trump sobre o confronto durante um protesto de supremacistas brancos, que deixou um manifestante negro morto em Charlottesville.
O pivô turco do Boston Celtics, Enes Kanter, denuncia para o mundo todo o autoritarismo do líder da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Kanter teve o passaporte cassado em 2017 após ser acusado de terrorismo por criticar o presidente. Por medo de ser preso, evita fazer viagens internacionais (mesmo com o time).
A lista é extensa e não para por aí. O comissário da NBA, Adam Silver, não aplicou multas em nenhuma ocasião como represália às manifestações. A postura é distinta, por exemplo, da “irmã” NFL – que vê o ex-quarterback do San Francisco 49ers, Colin Kaepernick, ser boicotado por ajoelhar durante o hino nacional dos Estados Unidos em protesto contra a morte de negros por policiais.
Inclusiva, a NBA atual surge como plataforma para debates especialmente por ser um espaço cada vez mais plural.
Hoje 82% dos jogadores são negros, conforme pesquisa realizada pelo Institute for Diversity and Ethics in Sport, pautando com frequência a discussão sobre o preconceito racial. Há também 108 jogadores estrangeiros de 38 países. A National Basketball Association tem ainda o maior número de mulheres e negros donos de times na comparação com as demais ligas profissionais norte-americanas.
Talvez, na atualidade, a mais poderosa voz dentro e fora das quadras seja a da superestrela do Los Angeles Lakers, LeBron James.
“Nós definitivamente não vamos calar a boca e driblar. Eu significo muito para a sociedade, demais para a juventude, demais para tantas crianças que sentem não ter uma saída”, disse.
Para ele, conscientizar seus fãs (são 65 milhões de seguidores só no Instagram) sobre injustiças sociais cotidianas é uma missão tão importante quanto o próprio basquete que apresenta. Os três títulos, quatro MVPs e 16 seleções para o All Star Game, fazem parte de um legado muito maior. James e outros colegas estão legitimando o ativismo entre atletas.
O esporte tem o poder de inspirar. E, mais do que nunca, seus protagonistas o estão potencializando como ferramenta para mudar conceitos.
Varjota Esportes - Ce. / MSN.
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