Quase xará de um campeão olímpico, Marcelo Negão era o maioral do vôlei no condomínio Parque Novo do Irajá no começo dos anos 90. Fosse com o sol rachando a quadra ou o mormaço invadindo o bairro cortado pela Avenida Brasil, na Zona Norte do Rio de Janeiro, o adolescente, mais forte e mais alto da turma, subia como uma águia para a cortada rasante e indefensável. Era ponto certo. Todo garoto queria ser como ele. Soberano. Um dia, uma menina lourinha, magrinha, habilidosa com a bola nos pés e nas mãos - jogava futebol, basquete e o concorrido voleibol -, começou a aprontar.
Fabiana Alvim de Oliveira, a Fabizinha, no início marcava o placar dos garotos. Até que uma vez ganhou uma chance. E não tinha medo das pancadas. Ralava-se no chão para fazer a defesa como se ali estivesse em jogo a medalha de ouro. Sempre com uma manchete ou um mergulho, puxava contra-ataque mortal para o seu parceiro em dupla. Passe para o ponto. Ou então, um bloqueio consagrador. Não tinha jeito. Marcelo Negão começava a perder ali o reinado.
A menina passou a ser a sensação do condomínio. Já era a dona do par ou ímpar para escolher o time. Para desespero de sua mãe, dona Vera, na época radicalmente contra. As surras não adiantavam. Fabizinha continuava sem medo das pancadas. E o vôlei virou obsessão. Após os jogos de duplas, ficava até tarde treinando defesa. O próprio Marcelo Negão virou "sparring". Ele cortava com toda força, de todos os lados. Fabizinha cada vez se saía melhor. E ainda desafiava. Pedia para o amigo mandar mais forte.
- Marcelo Negão chegou a quase profissional. Batia com mais vontade ainda em cima dela. E a Fabiana ainda provocava. Falava: "Bate com mais força, bate que nem homem!". Você vê, com aquele tamanho todo ela já tinha liderança. Depois no Rio de Janeiro, ela dando bronca em gigante... Eu falo sempre: tu ainda vai apanhar - disse o irmão e fá número 1, Maurílio Alvim, hoje dentista em Duque de Caxias.
A essa altura, o ídolo Zico, que a menina tentava imitar nas peladas de futebol com os garotos, perdia um pouco de espaço para os astros de vôlei. Nas Olimpíadas de 1992, já com 12 anos, grudada na TV em todas as partidas do time masculino, Fabi já vibrava com Giovane, Tande. E com as cortadas de Marcelo. Mas o Marcelo Negrão.
- Levava muito a Fabiana ao Maracanã, o ídolo dela sempre foi o Zico. No vôlei, Tande, Marcelo Negrão e todos aqueles. Eu trazia autógrafo para ela naquela época, em 92. Aí ela passou a gostar mais de vôlei - afirmou o pai, o bem-humorado taxista João Maurílio, na época motorista de jornalismo da TV Bandeirantes.
O ouro conquistado em Barcelona reluziu forte em Irajá. Fabizinha passou a ser destaque também do time do colégio, o Tarsila do Amaral. Foi vista por um treinador e indicada para o Grêmio Recreativo de Vista Alegre. De lá partiu para o Flamengo, time de coração. Das quadras do subúrbio ao duro caminho diário rumo à Gávea, nascia mais uma campeã. Fabizinha, a Fabi. Com a pronúncia Fabí , tônica na letra "i". Dando mais força à menina, que ao desafiar a fera da patota aprendeu a defender. E, ao desafiar o desejo dos pais, mostrou personalidade. Assim trocou o futebol pelo vôlei. Assim virou referência, descobriu o caminho do ouro em Pequim em 2008. E agora, a líbero do Rio de Janeiro volta a sonhar com o olimpo em Londres.
A escalada de Fabi é a quarta história da série "Como Nascem os Campeões", que começou domingo, com Cesar Cielo. Depois, continuou com Maurren Maggi e Robert Scheidt. Na quinta-feira, termina com o ginasta Diego Hypolito.
Das surras à Gávea
Antes do duro caminho diário de Fabi rumo à Gávea para os treinos, nada foi fácil para Fabi. A começar dentro de casa. O pai, João Maurílio, e a mãe, Vera, manicure na época, eram radicalmente contra a menina no meio dos garotos jogando futebol e vôlei. Queriam que ela estudasse, seguisse uma carreira. Fabiana bem que tentou. Mas a bola era sua paixão.
- Eu trabalhava como manicure das sete da manhã à meia-noite. Dava muito duro. Ela chegava do colégio e já corria para a quadra. Eu gritava: "Fabiana, vai estudar!" Pegava o chinelo e ia atrás dela, que pedia: "Mãe, para de me fazer passar vergonha!". Eu tinha bronca do Marcelo Negão, ele incentivava a Fabi a jogar võlei. Ainda por cima, tinha o outro que cismava de jogar baralho com ela. Eu dizia: "Isso é coisa de homem!" Uma vez, falei: "Um dia vou quebrar o cabo da vassoura e dar em você, Fabiana." Eu batia, mas ela não chorava na rua. Só dentro de casa. Um dia, ela me disse: "Não adianta, você pode me bater até me matar, mas não vou deixar de jogar vôlei. Ainda botei dois meses no balé, mas teve jeito. Aí, desisti e aceitei" - disse Vera.
A mãe, que hoje mora em Matias Barbosa, cidade mineira a 180km do Rio de Janeiro, passou a ser, aos poucos, a grande aliada de Fabi. Após uma partida de vôlei no colégio Tarsila do Amaral, a garota despertou o interesse do treinador Eduardo Monteiro. Ele a levou para o Grêmio Recreativo de Vista Alegre e garantiu a Dona Vera que teria futuro no esporte. Mas foi só após uma conquista da filha no Intercolegial, no Shopping Carioca, que o coração de mãe foi definitivamente convencido.
- Lembro como se fosse ontem. Ela chegou com a medalha no peito e avisou: "Mãe, olha bem pra isso aqui! Você ainda vai me ver na televisão, dando entrevista!" Ela sempre foi determinada e confiante. A partir dali, passei a acreditar também.
Quando ela perdia, o rosto ficava vermelho de raiva. Ficava reclamando: 'Você deu mole, fez isso, fez aquilo.'"
Rodrigo Safaday
A confiança aumentou mais quando Eduardo a levou para o Flamengo. A família entrou em transe. Todos em casa sempre foram rubro-negros. Mas o caminho era longo. Dois ônibus, quase duas horas. Para ir e voltar. Não era fácil. Fabi precisava ter paciência, perseverança. Os pais davam duro para conseguir as moedas da passagem. O irmão, Maurílio, era um dos maiores fãs e incentivadores.
- Lembro bem da determinação dela, saía de Irajá para pegar dois ônibus para treinar, sem condições financeiras, nossa família era bastante pobre... Ela era assaltada às vezes no caminho, chegava em casa altas horas chorando que tinha perdido o relógio... Depois, comecei na faculdade, às vezes saía após uma prova e ia buscá-la. A Gávea fechava 10 horas da noite, ela ficava do lado de fora com os amigos no portão esperando eu chegar. Foi bem sofrido. Digo que hoje ela colhe os frutos do trabalho de uma sementinha que plantou no passado.
Outra testemunha da disposição de Fabi em treinar é a professora Jurema da Silva, do Colégio Tarsila do Amaral, em Irajá. Olhando o razoável boletim da aluna - a nota C imperava -, dava para perceber: a cabeça estava mais na bola do que na sala de aula.
- Ela gostava demais de ir para o treino. Era engraçado... Quando era para ir para casa, dizia que queria ficar comigo, na minha casa. Entrava no armário... Mas quando saía daqui e tinha que ir para o treino, não se escondia não. Tinha que descer para ir embora rápido - afirmou Jurema, elogiando o comportamento da aluna.
Duro caminho
Se no começo o trajeto para o sonho de Fabi parecia pesadelo, pouco depois as coisas começaram a melhorar. Principalmente quando Rogério Lourenço, ex-zagueiro do Flamengo nos anos 90, hoje treinador no mundo árabe, passou a lhe dar carona na volta, à noite.
- Quando os horários combinavam, eu dava carona para ela na volta, à noite. Mas isso não foi nada, ela faria o mesmo por mim. Tínhamos uma convivência ótima, ela era praticamente uma irmã. Nossas famílias sempre foram muito próximas, os pais da Fabi compraram o apartamento dos meus pais, lá em Irajá. Jogávamos bola juntos, vôlei, tudo.
Rogério pode falar com autoridade sobre as qualidades e a determinação da amiga. Afinal, ele também percorreu o duro caminho de Irajá até a Gávea para se tornar atleta.
- Eu tenho 41 anos. Sou nove anos mais velho do que ela. O Marcelo Negão ainda é mais velho do que eu. Imagina, ele tinha todo jeito de que seria jogador de vôlei profissional. Largava a bola mesmo, sem piedade. Imagina uma garotinha ali pegando aquelas pancadas. Ela mostrou logo jeito para a coisa, se destacava no grupo cheio de meninos. No futebol, então, entrava no meio dos garotos e dava show. Tenho moral para falar sobre isso, né? Virei jogador do Flamengo....
Outro amigo dos tempos de Irajá, Rodrigo Lima, o Safaday, que ainda mora no condomínio, é outro que garante: se a escolha tivesse sido para o futebol, Fabi também faria sucesso.
- A Fabizinha jogava uma bola danada. Dava lençol, carrinho, a quadra era rala-coco. Tinha talento para futebol e vôlei. Fazia só golaço. A gente jogava salão, ela era mais ala. Tomei gol dela... Aí, quando fomos pro vôlei, finzinho da tarde... Marcelo Negão era um monstro cortando. Ela bloqueava, cortava direitinho, tomava medalhão... A diferença era de uns cinco, seis anos de idade. Devia ter uns 12 anos.... O pessoal abraçou a Fabiana. Quando ela perdia, o rosto ficava vermelho de raiva. Ficava reclamando: "Você deu mole, fez isso, fez aquilo." Ela cobrava. "Por que não bloqueou?" De umas 10 partidas, saía umas duas vezes. O resto da turma era rodízio.
Líbero de ouro
Marcelo Negão não seguiu carreira no voleibol e deu uma sumida da área. Fabi aparece de vez em quando nos churrascos de fim de ano em Irajá. E deu uma sequência à carreira de orgulhar os amigos. Ainda no Flamengo, a então atacante foi agraciada com as mudanças no regulamento. Entre elas, foi criada a função de líbero. Notícia melhor não podia ter acontecido.
- Ela começou como atacante. Mas como uma menina de um metro e setenta vai ser atacante? Aí surgiu a posição de líbero. Ela se encaixou. Até hoje fala que queria saber quem inventou essa posição - disse o pai, João Maurílio, que ganhou da filha um apartamento em Botafogo, onde fica durante a semana até ir ao encontro de Vera em Matias Barbosa.
Custei a perceber a dimensão de tudo isso"
Vera Alvimi
Depois da criação da posição de líbero, a carreira de Fabi engrenou de vez. Do Flamengo, foi para o Macaé em 1998. Uma temporada depois, o Rubro-Negro a pegou de volta. Mas Isabel a levou logo para o Vasco, onde conquistou o título carioca de 2000 e começou a aparecer mais. Até que o Campos lhe fez uma proposta. Lá, treinada por Luizomar Moura, jogou até 2005 e foi tricampeã estadual em 2001-02-03.
- Isabel foi muito importante na carreira da Fabi. Pessoa fundamental. Ficamos amigas. Depois, o Luizomar também. Fui a uma partida no Tijuca Tênis Clube. Era Campos x Rio de Janeiro. Vi um lance que me deixou impressionada, arrepiada. Ela defendeu a bola com o pé! Foi uma defesa espetacular. Aí eu me perguntei: será que esta menina vai mesmo longe? - disse Vera, que é o braço direito da filha e cuida de tudo, até de compra de apartamento.
Na verdade, a emoção de Vera ao ver Fabi defendendo com o pé foi recorrente das quadras de Irajá. A habilidade com o futebol ajudou muito. Como profissional, Fabi se aprimorou. Os fundamentos para ser líbero beiravam a perfeição. O passe também. Àquela altura, se tornava uma jogadora completa. A ida para o Rio de Janeiro, em 2005, selou a fase de ouro. Na seleção brasileira, viveu a glória. Tetracampeã do Grand Prix (2005, 2006, 2008 e 2009), penta sul-americana (2003, 2005, 2007, 2009 e 2011). E, o melhor, o ouro olímpico em Pequim. Ainda por cima, sendo eleita a melhor líbero - antes, tinha sido MVP no Sul-Americano em 2009. O voleibol de Fabi virou referência no mundo. Mas no meio disso tudo, houve decepções.
- O que marcou negativamente foi o primeiro corte. Na Pré-Olimpíada, oito anos atrás (Atenas-2004), ela e Leila foram cortadas na véspera das Olimpíadas. Isso deu um trauma na família muito grande. Depois, veio aquela derrota para a Rússia, depois de uma vantagem por 24 a 19 quando ia fechar o terceiro set, e o Brasil deixou virar. Aí, no ano seguinte, de novo, na véspera do corte, pensei: "Não é possível, jogando o filé que estava jogando..." Mas aí ela foi convocada, e coroada com a medalha de ouro. Agora bateu ansiedade de novo, véspera de convocação... O topo dela foi quando se consagrou campeã olímpica - disse Maurílio, emocionado.
A imagem da vibração final, com a narração de Galvão Bueno no ouro olímpico, a mãe entrando ao vivo no ar, não lhe sai da cabeça. João Maurílio, o pai, lembra também os tempos das vacas magras. Ao visitar o condomínio de Irajá, olhou para a janela de onde espiava, com Fabi, as peladas da garotada. Foi ali que a menina viu o sonho começar. Foi só descer a escada para começar a realizá-lo.
- Você sabe que até hoje não assisti ao DVD do ouro em Pequim? Não quis rever ainda. Acho que vou fazer isso se vier outra medalha de ouro. Custei a perceber a dimensão de tudo isso. Naquele dia, estava cega, surda e muda. Agora, não sei se virá um ouro. Mas uma medalhinha acho que teremos. O que mais importa é que minha filha está feliz - afirmou a mãe Vera, sonhando com outros dias felizes. E o Brasil agradece à família Alvim de Oliveira.
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