- Não me coloquem num pedestal e nem façam de mim um modelo!
A afirmação, em suave tom de bronca, é do técnico Tite, quase canonizado em 2012. Falar mal do gaúcho, comandante do sonhado e até então utópico título da Libertadores do Corinthians, se tornou uma espécie de pecado capital.
Os jogadores enchem sua bola, ressaltam seu senso de justiça, os torcedores o adoram, os adversários se dizem "felizes por sua conquista", ninguém o acusa de negócios escusos com empresários, ele normalmente cumpre seus contratos e até mesmo o "titês", vocabulário próprio que inclui palavras difíceis, como a famosa "treinabilidade", deixou de ser ridicularizado e se tornou referência.
Quem fez questão de derrubar sua fama de quase perfeito foi o próprio Adenor Bacchi. Em entrevista no CT do Timão, ele deu continuidade a um processo de "humanização", iniciado no ano passado por seus assessores, ao qual ele aderiu completamente. O professor que fala enrolado deu lugar ao homem de virtudes, fraquezas e capaz de colecionar inimigos. Sim, Tite tem inimigos!
- Tenho bastante - revelou.
Boa praça, sorridente a cada funcionário do clube que cruzou seu caminho durante a entrevista, ele não citou nomes dos seus desafetos. Sabe-se que não gosta do iraniano Kia Joorabchian, responsável por sua demissão do Corinthians em 2005; que teve problemas com o meia D'Alessandro em sua saída do Internacional, em 2010... Mas ele preferiu ressaltar a grandeza da conquista da América e falar do presente e do futuro de sua equipe.
Tite tem contrato até o fim do ano e se esquivou sobre uma possível renovação. Afirmou que está feliz, focado no trabalho, mas deu a entender que deixará para conversar apenas depois do Mundial, em dezembro. Ele, que está desde outubro de 2010 no clube, acha que um ano é o mínimo para um treinador ter seu trabalho avaliado, mas vê dificuldades para conseguir ficar mais de três anos em qualquer lugar.
É esse Tite "chato", "inquieto", "perfeccionista", "prolixo" e algumas vezes até "injusto", adjetivos usado por ele mesmo, que mostrou sua cara ao GLOBOESPORTE.COM. Um Tite completamente "humano":
Logo depois do título você disse que a ficha ainda não havia caído. Já caiu? O que mudou em você?Aumentou o assédio público e da imprensa. O Tite continua o mesmo e a ficha ainda não caiu totalmente porque fiquei voltado à recuperação da equipe. E talvez só caia completamente quando eu sair de férias e rever jogos, entrevistas. Aí a dimensão do fato ficará mais clara para mim. Depois da classificação contra o Santos, o Guilherme (Prado, assessor de imprensa do Corinthians) disse para mim e meu filho Matheus (de 23 anos): “Vocês não são daqui. São gaúchos e não têm a real dimensão do que é a Libertadores para o corintiano”. Aquilo me marcou. Agora o torcedor diz que não vai mais ouvir gozação. Vejo o orgulho da conquista, pela forma como foi, as dificuldades, a grandeza dos confrontos. Ela é muito grande.
O Corinthians tratou a Libertadores como “apenas mais uma competição”, embora a tenha priorizado desde o início do ano. Era preciso tirar esse peso para vencer?Sim. E passar isso para o torcedor. Todos nós demos importância, mas qual é a verdade? A Libertadores não tem exigência técnica maior do que o Brasileiro. Jogar contra Flamengo, São Paulo, Grêmio, Internacional, é igual a Boca, La U. A Libertadores tem suas características, mas a dificuldade não é superior ao Brasileiro.
Muita gente considera você “o cara” do título. Concorda?Discordo. Nunca vão encontrar “o cara” do título. Não tem. Todos apareceram. Eu numa substituição ou na felicidade de, em termos estratégicos, impedir o Neymar ou o Riquelme de jogarem. Num outro momento apareceram Romarinho, Cássio, Alessandro, Castán, Chicão... E terminou com o Sheik. Com a visibilidade toda, ele deu a mesma resposta. Que o conjunto foi muito importante para chegar o seu momento. Foi uma porrada de caras, uma direção que manteve, um estafe de qualidade. Não estou falando por demagogia. Falo porque é verdade.
E qual foi o seu grande momento?O jogo contra o Santos, na Vila. Era o campeão da Libertadores, com qualidade técnica, um time rodado, com experiência de jogar Mundial contra o Barcelona. É muito difícil jogar na Vila. Mais do que o Boca. Aquele jogo, em termos estratégicos e de preparação, foi fundamental. Eu queria muito treinar na Vila e que estourasse uma porrada de foguetes (veja no vídeo ao lado). Quando estourou o primeiro, eu disse: “Que estoure mais, tomara que venha mais uma rajada”. Queria colocar a equipe no clima do jogo. Fora aspectos táticos, a marcação do Neymar surpreendeu, fomos agressivos. Nossa equipe é mentalmente muito forte, jogou com naturalidade, o que é difícil lá.
Em 2005, sua saída do Corinthians foi confusa (o iraniano Kia Joorabchian, presidente do MSI, antigo parceiro do clube, foi ao vestiário cobrar os jogadores pela derrota por 1 a 0 para o São Paulo). Ganhar a Libertadores é especial também como resposta?Não, cara. Não tenho sentimento de responder a ninguém, palavra de honra. Tenho orgulho pela forma como vencemos. Passamos o espírito de competição, competência, de ser melhor, mas sem querer o mal de ninguém. Claro que fiquei chateado com a saída, mas dar a resposta é muito pequeno para a grandeza da conquista. Só não gosto do convívio de algumas pessoas. Tenho muitos inimigos no futebol e cometi algumas injustiças. Sou um ser humano, mas nunca por sacanagem, premeditação ou querer tirar proveito de outra pessoa. Isso eu não faço.
Você disse que tem muitos inimigos. Isso é um pouco chocante. Você parece não ser o tipo de pessoa que tem inimigos.Tenho bastante.
Por culpa sua ou deles?Dos dois. Minha no lado humano de incompreensões, escolhas necessárias. Técnico tem de fazer escolhas, mas elas não são ditas. São guardadas, ficam no bolso.
São outros técnicos, jogadores, dirigentes?Em todas as áreas. Técnicos, atletas, dirigentes, ex-colegas que jogaram comigo. Como todo ser humano tem. Não me coloquem num pedestal só porque venci! Não sou o protótipo da coisa correta. Sou um ser humano que tem muitas pessoas com quem não cruzo.
O Felipão chegou a ser seu inimigo?Não, inimigo não. Houve um atrito, um enfrentamento de dois caras educados, grandes pessoas, mas que competem e querem o melhor para suas equipes(assista no vídeo ao lado).
E quem é seu amigo no futebol? Tem mais do que inimigos?Se eu nominasse, poderia faltar alguém. Tenho mais amigos. O maior é meu irmão (Ademir).
Você já ganhou Libertadores, Brasileiro, Sul-Americana e Copa do Brasil. Ainda dá para desconfiar ou contestar você como técnico?Sou o único técnico campeão pela dupla Gre-Nal e também em uma equipe do interior (conquistou o Campeonato Gaúcho em 2000 pelo Caxias). Eu não tinha desconfiança no Rio Grande do Sul, mas tinha em São Paulo porque vinha para ser bombeiro. Também por escolha minha. Em 2004 veio a oportunidade de salvar o Corinthians da segunda divisão. E quando o torcedor me deu flores por livrar a equipe, foi muito marcante, mas não é título, né? Não traz o marketing e a visibilidade de agora. E não quero que pensem que, para ganhar, tem de ser igual ao Tite. Tem de ser aquilo que acredita. Não venham fazer de mim modelo, não! Veio o Palmeiras (em 2006), era recuperação. Veio o São Caetano (em 2003), recuperei e, na hora em que estruturamos a equipe para o Paulista, saí com uma derrota. E depois, com méritos, o Muricy assumiu e foi campeão (paulista, em 2004) com todo grupo montado pela direção e por mim. Eu tinha de voltar a São Paulo não para fugir do rebaixamento, mas para brigar pelo título. Quando veio o convite do Andrés (Sanches, ex-presidente do Corinthians) em 2010, vislumbrei a possibilidade de ser campeão.
Às vezes sou muito prolixo, professoral. Deveria ser um pouquinho mais direto. O tempo me mostrou um lado mais humano"
Tite
Você está falando de suas falhas como ser humano, que não é modelo, não é protótipo... E como técnico, em que você não é bom ou ainda pode melhorar?Ah, às vezes sou muito prolixo. Deveria ser mais “pá, pá, pá" e responder. Falo, dou uma resposta, ilustro... (risos). Poderia ser um pouquinho mais direto. O tempo me mostrou um lado humano, antes eu era muito professoral. Às vezes me pego muito didático, professor de Educação Física. Sou perfeccionista, inquieto (passou quase toda a entrevista balançando a perna direita e mostrou isso neste momento), impaciente, quero as coisas andando rápido. Eu me aflijo com quem é demorado demais, fica esperando as coisas acontecerem. Estou sempre cutucando quem está perto, sou um pouco chato (risos).
Você também passou a mostrar um lado mais humano e menos professoral em suas entrevistas. Isso foi espontâneo e o faz se sentir melhor?O “start” quem me deu foi o Luciano (Signorini, assessor de imprensa do técnico). Eu não gosto que as pessoas digam “faz isso”. Gosto que me convençam, fui educado assim. Tive um professor na universidade que falava o seguinte: “Tudo que falei é mentira, agora reflitam e, se houver alguma coisa legal, peguem para vocês”. Ninguém enfia na cabeça do outro o que quer, ele te convence. E me disseram para eu botar para fora esse outro lado, mais humano, que as pessoas não conheciam. Comecei a pensar e saiu de forma espontânea.
Você dizia que técnico, no Brasil, tem prazo de validade. Ainda pensa assim depois de derrotas e títulos marcantes pelo Corinthians?Sim. E falo em prazo de validade para sair e ficar. Por favor, não me deixem um técnico menos de um ano no clube! Ninguém vai conseguir avaliar trabalho se não houver tempo mínimo para estruturar uma equipe, dividir com a direção, contratar, trazer um jogador da base e dar tempo para ele amadurecer. Corremos o risco de avaliar um técnico, um trabalho, uma direção e um atleta de forma errada. Não precisa ser como na Europa, mas em um ano já há condição de formatar uma opinião, não um conceito definitivo. É o mínimo.
E qual é o máximo?Não sei, mas a partir de três anos acho que fica brabo... Há um desgaste maior, é inevitável. Depende de resultados, como se oxigena o grupo, se mudam direção, ideias e perfil.
E o seu prazo de validade, como está (Tite está no Corinthians desde outubro de 2010 e seu contrato vence em dezembro deste ano)?É por etapas, campeonatos, situações... Essa avaliação é da direção, posso dizer que estou muito feliz, contente e quero ficar focado no trabalho até o final do ano. No fim do trabalho, a gente olha para trás, vê o que fez de bom e a perspectiva da frente. Senão corremos o risco do erro de uma avaliação parcial.
Quando ganharam a Libertadores, São Paulo e Santos perderam cinco de oito jogos depois, no Brasileiro. Não é uma crítica a eles, mas podemos pegar a experiência do outro e aprender. Tem de voltar para o campeonato!"
Tite
Na semana passada, perguntamos a Ralf e Paulinho se o Mundial havia sido primordial para que eles ficassem, mas ambos disseram que a competição ainda está muito longe e era hora de focar o Brasileiro. Foi você quem colocou isso na cabeça deles?A médio e longo prazo, claro que é o Mundial, a perspectiva de ficarem num grande clube, em que se sentem bem, a Libertadores garantida no ano que vem. Mas isso é lá na frente. Agora é retornar à realidade o mais rápido possível. Pegar a tabela e ver que está na zona de rebaixamento é um inferno, cara. Tu trabalhas louco para chegar outro jogo e dar uma respirada. Isso é muito pesado para quem vive no grande clube. Então, nosso passo é recuperar o desempenho e fugir desse inferno.
O que você espera do Corinthians no Campeonato Brasileiro?Primeiro, que retome seu padrão normal. Resolva todas as situações, são importantes e a direção está fazendo um esforço extraordinário pela permanência de todos os atletas. Infelizmente alguns optaram por sair, não por nossa vontade.
Feito isso, será hora de pensar no Mundial?Feito isso, olha para trás e vê que tem um tijolo. Acrescenta outro e, quando vê, a coisa está sólida. Perdemos para o Santos na final do Campeonato Paulista (no ano passado) e nos fortalecemos. Não estávamos com vontade de receber a medalha de vice-campeão, mas coloquei que precisávamos ter dignidade para sair do vestiário e ir. Passei pelo presidente do Santos e doía na alma, mas o cumprimentei. Fortalecer-se a cada dia é o grande segredo.
Você já disse que gostaria de jogar com centroavante. Guerrero vai ser titular? Você vai mudar o esquema campeão da Libertadores?Ali dentro é que mostra (apontando para o campo). Quando produzir lá a gente vê. Tem de ter as opções da referência, dois de movimentação e dois de velocidade e armação. Depende de como se apresentar no jogo e quando entrar no transcurso do jogo, para modificar algo.
Ele era um dos nomes que você listou para a diretoria?Sim. Nós elencamos alguns nomes importantes, uns eram descartados à medida que não havia possibilidade, mas ele era um dos jogadores.
Você criticou o Chelsea na semifinal da Liga dos Campeões por um jogo totalmente defensivo e se irritou quando o compararam com o Corinthians (veja no vídeo ao lado). Acha que vai encontrar um time diferente no Mundial?Nem sei se vou encontrar porque temos jogos anteriores. Vai depender muito dessa trajetória. Estão contratando o Oscar... Depende de um monte de coisas. A resposta é: não sei.
Você gostaria de ser técnico na Copa do Mundo de 2014?Não, porque entendo ser justo o Mano terminar seu trabalho. Sem demagogia.
Mas eu não me refiro só à seleção brasileira. Pode ser de qualquer outra.Tive um convite da seleção peruana quando saí do Grêmio. Chegamos a conversar, mas já estancamos no início. E agora, aqui no Corinthians, houve sondagem de Colômbia ou Equador, não sei. O Gilmar (Veloz, empresário de Tite) comentou, eu disse que queria terminar meu trabalho. Tenho muito orgulho porque não passei por muitos clubes. Minha carreira é feita em cima de trabalhos com início, meio e fim.
Mas, com todo respeito ao Peru, e se fosse uma seleção alemã, portuguesa ou até mesmo brasileira? Sem prazo, é uma meta da sua carreira?Em seleção europeia, acho muito difícil. O Felipe conseguiu uma coisa extraordinária (Luiz Felipe Scolari, atualmente no Palmeiras, foi técnico da seleção portuguesa entre 2002 e 2006). A Europa valoriza os profissionais de lá, e acho correto. Tu conheces a cultura, as características do povo. Vou te dizer, eu ficaria muito incomodado se visse um técnico estrangeiro para a seleção brasileira. É corporativismo? Pode chamar do que quiser. Mas o brasileiro conhece futebol, a cultura do futebol, há grandes profissionais, campeões do mundo. Não consigo conceber.
Então aquele papo de Guardiola na seleção brasileira lhe incomodou?Acho muito pequeno esse tipo de comentário. Pego o exemplo do Abel Braga. O Internacional era muito inferior tecnicamente ao Barcelona e foi campeão mundial (em 2006). Ele pegou o jogo e amarrou o Barcelona. Ronaldinho não andou! Quer vitória mais marcante em termos estratégicos? Ou um Telê Santana fazer a Seleção jogar como jogou na Copa de 82? Fico relembrando a qualidade da equipe, a beleza, a objetividade, mas perdeu para a Itália num confronto, uma tarde errada. Só vale o título? O trabalho não vale? Respeito o campeão, mas grandes trabalhos têm que ser respeitados.
Você gosta muito do trabalho no campo, algo que em seleção se faz pouco. Como seria?É um desafio, tem de adaptar toda uma situação. É reunir um grupo e não fugir muito dele para dar entrosamento. Esses são os atletas e vamos repetir a cada convocação para montar uma equipe de trabalho. Esse é o termo. É um ajuste que teria de ser feito.
O que fez com sua medalha de campeão da Libertadores?Está guardada. Ontem à noite, um amigo do Matheus queria tirar uma foto comigo, e eu com a medalha. Ele é são-paulino e brinquei com ele, coloquei a faixa de campeão nele. Mas sempre com muito respeito e pela consideração que ele teve de querer tirar foto comigo.
Você gosta de namorar as medalhas ou elas ficam esquecidas na gaveta?Estão em Porto Alegre as medalhas e faixas. Tenho uma estante. Numa situação mais descansada, tu olha, cada uma tem um significado e tu começa a relembrar a trajetória e o trabalho de cada uma.
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