Clarence Seedorf chegou ao Rio de Janeiro há 21 dias e desde então vive uma relação intensa com o Botafogo. A chegada festiva no aeroporto, a primeira aparição no Engenhão, a estreia... tudo cercado de grande expectativa e sempre sob todos os holofotes. Aos poucos, no entanto, o craque holandês tenta retomar o ritmo normal de sua vida, agora no Brasil, país que sempre admirou desde a infância no Suriname, seu local de nascimento.
Na quinta-feira, o meia recebeu o GLOBOESPORTE.COM em um hotel de Ipanema, na Zona Sul do Rio, para uma entrevista. Elegantemente trajado com calça social e camisa de gola, tomou café da manhã e seguiu para a suíte. No elevador, comentou sobre o encantamento pelo inverno carioca, bem diferente do frio que se acostumou a enfrentar nos anos em que atuou na Europa.
- É disso que eu gosto. Nem no início do ano vou ter problema. Já vim muito para o Rio em dezembro. Calor é no Suriname, muito mais abafado.
Acostumado a ser turista, Seedorf agora mora e trabalha na cidade. Famoso pelo profissionalismo, ele avisou que não veio para levar a vida no "jeitinho carioca" durante os dois anos de contrato que tem com o Botafogo.
- Não estou de férias no Brasil. Vão me ver pouco na praia.
O camisa 10 abriu mão de propostas mais vantajosas financeiramente para acertar com o Alvinegro. Aos 36 anos, viu neste desafio o combustível que precisava para se motivar e manter seu rendimento em alto nível em um campeonato competitivo.
- Esta mudança de país e de time também me mantém alimentado. Fiquei dez anos no Milan e achei que era a hora de mudar. Me sinto bem, me sinto jogador.
Nos dois primeiros jogos de Seedorf, o desempenho do time não foi o que os alvinegros esperavam. As duas derrotas (para Grêmio e Vasco) ligaram o alerta e deixaram a equipe mais longe do G-4, mas o holandês acredita que não há motivos para alarde. Ele pediu paciência e mostrou confiança de que o Bota entrará em um rumo vitorioso.
- Todo mundo pode ajudar, eu sou só um a mais. Todo mundo tem que dar tudo que tem, dentro e fora de campo. Ano passado, o Botafogo fez um bom campeonato. Com certeza vamos melhorar esta situação. Duas derrotas não significam nada, faltam muitos jogos ainda. Só com muito trabalho vamos poder conseguir os resultados. O clube está há muitos anos sem ganhar títulos importantes, é preciso paciência para construir isto. Estou feliz de poder ajudar, dar à torcida o que ela mais merece.
Seedorf conta também como está sua adaptação ao Rio, quem são seus cantores brasileiros favoritos, fala de política, questões sociais, recorda a infância no Suriname e revela seu percentual de gordura.
Confira a íntegra:
GLOBOESPORTE.COM: Depois de dez anos vestindo a mesma camisa (Milan), qual foi a sensação da estreia pelo Botafogo e como foi a chance de disputar o primeiro clássico carioca logo na rodada seguinte? Já está à vontade para orientar, exercer seu papel de líder?
SEEDORF: Foram duas semanas de muito movimento em uma situação nova, um país novo, time novo, tudo novo. Muitas coisas para se adaptar ainda. Algumas coisas estão sendo mais fáceis por causa das pessoas, a começar pelo carinho que recebi desde a chegada, tanto dos torcedores quanto do clube, tanto no aeroporto quanto no vestiário. Com a ajuda dos jogadores tudo fica facilitado também. Sobre a vida é um pouco mais fácil porque há dez anos que venho para o Brasil com a minha família. O Rio não é uma cidade estranha para mim. Mas gosto de novidade, gosto de aventura. Estou me adaptando o mais rápido possível. Vim para jogar futebol.
Como viu seu rendimento nos dois primeiros jogos?
Preciso de mais tempo. Estou no começo da minha temporada, preciso de tempo para melhorar minha condição física também.
Já faz quase um mês desde o seu anúncio oficial. Este início tem sido como você imaginava? Algum detalhe surpreendeu no futebol brasileiro e no Botafogo?
Não sou de criar muita expectativa com as coisas que eu não conheço. Preciso estar no meio das coisas para entender, valorizar. Mas estou gostando do que estou vivendo, as experiências têm sido boas. No campo tem muita novidade, mas isto é em todos os países. Mudei da Holanda para Espanha, depois para a Itália... são culturas completamente diferentes. Algumas coisas aqui são mais fáceis para mim, como a comida. É mais parecida com a do meu país (Suriname) do que a italiana e a espanhola. Nestes aspectos estou sofrendo pouco (risos).
Qual foi sua impressão da torcida do Botafogo neste início?
A torcida tem sido maravilhosa. Deixaram o trabalho de lado para me abraçar (no aeroporto). Cantaram bastante. É uma coisa muito bonita. Antes de chegar eu já sabia mais ou menos, porque brasileiros me falaram da torcida do Botafogo.
Já aprendeu as músicas? Gostou da forma que gritam o seu nome?
Ainda não aprendi. Isso eu deixo para eles cantarem e criarem as canções. Tento conquistá-los jogando, meu jogo é no campo, sempre fui assim. Mas reconheço bem quando eles cantam diretamente para mim.
Como está a adaptação ao Rio, a família está gostando? Houve tempo para fazer a mudança para o apartamento, escolher a escola para os filhos...?
Está tudo indo bem. Claro que apartamento é como criança, não para nunca. Pede atenção. Mas agora já estamos em uma boa situação, vimos o apartamento com calma... Escola também está organizada. Mas se passaram só duas semanas, acho que só vamos começar a vida mesmo quando as crianças começarem as aulas, entrarem no ritmo.
Consegue se achar bem na cidade? Já se perdeu alguma vez?
Me viro bem. Conheço a cidade faz tempo, é difícil se perder aqui. É bem construído, a sinalização é bem clara. Se não soubesse nada, podia me virar com o navegador. Mas aqui também tem tudo dentro de um raio de 1km.
Algum costume brasileiro/carioca já está incorporado ao seu dia a dia? Praia, novelas na TV...
Novela é sempre forte, não tem como escapar (risos). Em alguns casos é obrigatório. Na Itália passava também. Não sei nomes, porque não sou muito de ver televisão. Mas praia ainda não, não estou de férias. Vão me ver pouco na praia.
Você já disse que gosta de samba. Pretende acompanhar mais de perto agora?
Tudo vai aumentar, agora vou conhecer um pouco melhor a cultura brasileira. O país sempre esteve perto do meu coração.
Tem algum cantor/cantora brasileira que vê admira? E escritores, filmes...?
São vários personagens importantes. Roberto Carlos talvez seja o mais famoso, já tive a oportunidade de ir a alguns concertos e ver na televisão. Gosto da Ivete Sangalo também. Alguns nomes não estão na cabeça, mas são artistas importantes. De escritor eu conheço o Coelho (Paulo), mas ultimamente não li nada dele.
Sua esposa Luviana ganhou a admiração dos torcedores, que consideraram que ela teve um papel importante na sua decisão de jogar no Brasil. Como você a conheceu e qual foi o grau de incentivo que ela deu para você acertar com o Botafogo?
Ela também viajou o mundo inteiro com o trabalho dela e está voltando depois de muito tempo. Nos conhecemos em Madrid e começamos nossa história. Ela me deixou tranquilo para decidir o que me deixasse mais feliz profissionalmente. Ela sempre deu suporte na minha história, mas claro que agora era um pouco mais particular por ser o país dela. Está feliz de voltar para casa.
Os seus testes físicos impressionaram a comissão técnica do Botafogo. Eles chegaram a dizer que você tinha estabelecido um novo patamar no elenco. Qual seu segredo?
No esporte não é como ser ator, por exemplo, que pode-se chegar a 70 anos em atividade. Você tem dez, 15 anos, e, para chegar a uma excelência, precisa se cuidar. Procuro descansar bem, me alimentar bem... A motivação é importante também, o estado mental. É preciso estar bem psicologicamente para ir treinar. Esta mudança de país e de time também me mantém alimentado neste aspecto. Fiquei dez anos no Milan e achei que era a hora de mudar. Me sinto bem, me sinto jogador. Maldini, Cafu... estes atuaram até quase 40 anos em altíssimo nível. Não é a idade que fala.
Qual o seu percentual de gordura?
Uns 5% mais ou menos.
Acredita que seu profissionalismo e longevidade podem servir de exemplo para os jogadores aqui do Brasil?
Espero que sim (risos). Maldini chegou a 40 anos bem, mas também não fuma, não bebe, tem disciplina... Existe o aspecto da motivação para continuar treinando também. Vencer não é ganhar a Copa, é cada dia dar seu máximo. É ser competitivo consigo mesmo e depois com o seu grupo.
Durante a carreira você jogou em alguns dos principais times e com alguns dos principais jogadores do mundo. Como acredita que será a experiência de ser a grande estrela, o principal nome?
Sempre joguei em times com muitos jogadores importantes, mas acho que o Botafogo tem muitos talentos também. O mais importante é o que acontece no vestiário, se o grupo é unido. Não tenho esta maneira de olhar, já vi personagens do passado que tinham muita importância fora e pouca dentro do vestiário e do campo para criar, fazer o time crescer. Então, acho que o principal é trabalharmos juntos.
A torcida do Botafogo pode ter a esperança de que o clube será o último da sua carreira?
Não gosto de prometer coisas sobre o futuro. Sei que tem pessoas com essa capacidade de programar, mas eu não. Agora estou aqui e vou dar tudo de mim pelo tempo que estiver aqui. Trabalho com seriedade para conquistar os objetivos. Qualquer criança tem o sonho de ganhar um Brasileirão, então temos que trabalhar por um sonho. Pode ser que chegue agora ou mais para frente. O importante é a cada dia colocar uma pedra para construir a sua casa.
Já vi personagens do passado que tinham muita importância fora e pouca dentro do vestiário e do campo para criar, fazer o time crescer. "
Clarence Seedorf
Se você não fosse jogador, qual profissão imagina que teria seguido?
Sempre pensei em ajudar aos próximos. Possivelmente seria um psicólogo ou trabalharia com fisioterapia para ajudar as pessoas.
As pessoas próximas a você comentam da sua vontade de se informar sobre tudo. Apesar do pouco tempo no país, já deu para se familiarizar com o cenário político, econômico e social do Brasil?
O Brasil é um país que cresceu muito nos últimos dez anos, e o principal que vejo é que é muito unido. Levar 30 milhões de pessoas para a classe média é uma coisa maravilhosa. Tem muitas oportunidades, o Mundial (Copa do Mundo) está chegando... Há muitas coisas que podem ser exploradas, o país pode crescer ainda mais. É uma coisa maravilhosa. Gosto muito de ver o aspecto social, vai ser uma coisa muito interessante de acompanhar vivendo aqui. Vou poder ter contato com esta realidade. Muitas vezes a televisão fala sobre o que ela quer. Tenho a possibilidade de ver com os meus olhos como os brasileiros pensam, quais são as dificuldades, saber o motivo de serem felizes igualmente. Todo brasileiro que conheço tem este aspecto da alegria. Transmitem isto em todos os clubes que jogam. Tenho esta curiosidade de viver isto no dia a dia e aprender.
O Brasil está nos planos de ação das suas fundações?
Com certeza. Já fiz um trabalho através da minha fundação no ano passado, em Salvador. Faço o que posso, e nem sempre com a fundação. Muitas vezes sou eu diretamente falando com as crianças, com os jovens, confrontando com aspectos da vida, assuntos como racismo, diversidade... Às vezes uma palavra faz mais efeito do que dar dinheiro para um projeto. Posso convencer você de um conceito positivo, a ajudar ao próximo... Esta coisa vai passando como uma bola de neve. Sei da visibilidade que tenho, e é muito importante conversar com as próximas gerações para tentar mantê-los em uma linha justa.
Fizemos uma série de reportagens no Suriname para tentar contar sua história e mostrar sua ajuda ao país. Quais suas principais recordações do país?
Saí com três anos, muito jovem. Aí voltei de férias quando estava com seis. Depois passaram uns dez anos para eu voltar novamente. Não tinha dinheiro. Minhas lembranças são todas bonitas, são sobre família... Meu avô, que viveu 96 anos, é uma pessoa muito importante para nós. Foi na casa dele que vivi até os três anos com minha mãe. Meu pai foi para Holanda, não estava quando eu nasci. Ele estava procurando uma vida melhor para nós. Depois que fomos morar com ele. Mas todas lembranças são muito boas, ligadas à natureza e à família. Com o tempo, depois que tinha uma possibilidade financeira melhor, pude ir mais vezes, conhecer melhor o país e também cresceu a vontade de dar alguma coisa em retribuição. O país tem potencial, muito a crescer.
Lá você é ídolo não só pelo seu sucesso no futebol mas também pelo trabalho social que faz para a população local. Tem dimensão da sua importância para os surinameses?
Não posso dizer que não tenho, sou consciente do que represento para aquelas pessoas. Não vejo como uma pressão, para mim é algo natural ajudar com projetos, mas também com meu tempo ou simplesmente me comportando como faço. Não gosto de prometer, gosto de fazer, principalmente em países em situação complicada. Nunca prometi nada. Só quando estava com algo certo que eu avisava, como foi com o centro esportivo. Não tem nada pior para as pessoas que vivem de esperança que você faça apenas promessas. Isso é uma coisa que aprendi jovem, aconteceu comigo. Procuro manter essa linha, mas não é fácil.
Com qual frequência você visita o Suriname?
Vou quando posso, mas não é todo ano. Quando estava na Europa era quase impossível. São nove horas de viagem, e ainda precisava ir para Holanda antes de ir para lá. Mas tento ficar pelo menos uma semaninha por ano lá para dar uma atenção, mostrar a proximidade. Às vezes isso basta.
Varjota Esportes - Ce. / Globoesporte
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