"E Johan viu o espaço" Jornalista David Butter reverencia e explica a importância de Cruyff para o futebol

  
 
Holanda 2 x 0 Uruguai, Copa de 1974. Comecem por lá. Quando imagino a reação da humanidade ao desembarque de alienígenas ou de deuses na Terra, penso nesta partida. O assombro dos uruguaios frente ao que se desenrolava ali no gramado de Hanover segue à espera de uma ópera, com Johan Cruyff no meio.

Não, eu não vi Cruyff jogar. Perdi o bonde da grandeza. Tive que correr atrás do disponível em livros, sites e vídeos. E aprendi: Cruyff foi um Pai do Jogo, uma figura daquelas inseparáveis da fibra do esporte como gostamos e conhecemos.
FOTOS HISTÓRICAS COPA DO MUNDO - Johan Cruyff Holanda disputa a bola com Kent Karlsson Suécia (Foto: Agência AP)Johan Cruyff, da Holanda, disputa a bola com Kent Karlsson, da Suécia (Foto: Agência AP)
Pois Cruyff não atuou só como um craque extraordinário, não comandou apenas como um treinador brilhante: Cruyff construía, reformava, repensava o jogo desde que vestia a camisa branca e vermelha do Ajax.  No excepcional “The brilliant orange”, uma espécie de biografia do futebol holandês, o jornalista inglês David Winner descreveu o Cruyff-atleta da seguinte maneira:

“A imagem mais marcante dele como jogador não é marcando, correndo ou desarmando. É Cruyff apontando: ‘Não, ali não, um pouco para trás... Dois metros adiante... Quatro metros para a esquerda’. Ele parecia um condutor dirigindo uma orquestra sinfônica. Era como se Cruyff estivesse ajudando seus colegas a levar adiante uma interpretação aproximada da sua visão sublime de como o espaço deveria ser ordenado.”

Assim era no campo, e também no pós-jogo. Nos times em que atuou, era Cruyff quem pautava os debates, e, no centro dessas conversas, estava sempre o problema do espaço e das possibilidade de controle do jogo a partir dele. Para o futebol, em perspectiva, essas conversas perdidas na fumaça dos 1960s e 1970s representam o equivalente dos diálogos na antiga Academia de Atenas. O Cruyff-treinador foi uma extensão. 

Falam agora do giro do Cruyff, da leveza de seus movimentos, de sua capacidade técnica – bagatela. Cruyff não teve, como os outros, uma "carreira", algo mensurável em conquistas, feitos, lances de almanaque, nada. O Reino de Cruyff sempre foi outro. Vista em perspectiva, a trajetória de Cruyff é a de um esforço analítico-poético desdobrado no futebol. E esse esforço não se realizava no vácuo, pelo contrário: bebia, imbuía-se e dialogava com a efervescência circundante na cultura e na política. 

Cruyff nunca jogou sozinho, nunca dirigiu sozinho, nunca venceu nem perdeu sozinho. Em qualquer instância, entretanto, no campo, no banco, no vestiário, Cruyff lá estava arquitetando, repensando o jogo a partir de seus fundamentos: o espaço, o passe, a posse e o que mais soasse terreno aos outros e que, na mente dele, pudesse ser convertido em objeto do intelecto, em arte. 

Sem esse homem-percurso, não haveria Ajax dos 1970s, não existiria Holanda como escola, não resistiria Barcelona como centro de uma revolução. Ninguém tem tanta mão no futebol de primeira linha jogado hoje. Cruyff educou o resto do mundo, inclusive na reação ao que propunha.

A galeria de Cruyff não ostenta Pelé, Maradona ou Messi: está reservada aos arquitetos do futebol, e nessa galeria às vezes correm setenta, oitenta anos, sem um novo quadro. O que pode constituir um exagero aqui? A influência de Cruyff está no nível dos pioneiros do "jogo de passe" escocês, gente de séculos atrás.

Morreu um Pai do Jogo. Noutras esferas, seria um criador de reinos, línguas e obras fundadoras de civilizações inteiras. Acontece que ele era o futebol. 

Assim soam os versos de Toon Hermans, comediante, cantor e escritor holandês:

“E Vincent [Van Gogh] viu o milho

E Einstein, o número

E Zeppelin, o zepelim

E Johan viu a bola.”

Que baixem as bandeiras.

* David Butter é jornalista e escreve a convite do GloboEsporte.com 

  Varjota  Esportes - Ce.          /          Globoesporte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário