Ordem no meio do "caos" sub-20: o mundo paradoxal de Rogério Micale Em entrevista, treinador da seleção sub-20 busca estabilidade em meio a projeto que assumiu de surpresa, aponta acertos e enganos na base e defende futebol ofensivo

Rogério Micale vive uma situação curiosa. O técnico da seleção brasileira sub-20 é um entusiasta do planejamento, defende uma avaliação mais equilibrada de seu trabalho, prega continuidade. Mas tudo que aconteceu nos últimos 30 dias e culminou na presença do Brasil na final do Mundial, neste sábado, contra a Sérvia, vai ao contrário do que ele acredita: troca brusca de comando, preparação conturbada, elenco desconhecido. É neste paradoxo, buscando ordem no meio de um aparente caos, que o treinador tenta se equilibrar. 
Micale é baiano, tem a fala tranquila, mas sabe defender o que acredita. Numa conversa de quase uma hora com o GloboEsporte.com na véspera da decisão, ele expôs suas ideias para o futebol brasileiro e para a base do país. Condenou a cultura de analisar trabalhos apenas pelo resultado; lamentou o resultadismo nas categorias formativas; questionou o que chama de “europeização” do jogador brasileiro; garantiu: mesmo se o Brasil perder para a Sérvia, o processo iniciado neste Mundial foi positivo. Ainda que não seja exemplo para o futuro. 
- Seria paradoxal falar no contrário, porque acredito em trabalho, em manutenção de grupo, em permanência de treinador, mas essa campanha é totalmente o contrário. Talvez eu esteja aqui fazendo um desserviço a tudo aquilo que prego. Você prega tudo isso aí e chega num Mundial com 20 dias para treinar, não conhece o grupo, e chega numa final, podendo ser campeão – disse o treinador.  


Rogério Micale Brasil sub-20 (Foto: Felipe Schmidt)
Rogério Micale durante entrevista no hotel em que a seleção brasileira está em Auckalnd (Foto: Felipe Schmidt) 

Micale está mais preocupado com o caminho do que com o destino. E sua caminhada na seleção começou de repente, logo depois a demissão de Alexandre Gallo, a poucos dias do início da preparação. Ele sequer cogitou dizer não. Temeu perder a grande chance na seleção num projeto que começava torto e precisava ser endireitado. Mas aceitou. Agora, pode ser campeão mundial. 
Confira a entrevista na íntegra:
GLOBOESPORTE.COM: O que você estava fazendo quando te ligaram com o convite para assumir a seleção sub-20?
Rogério Micale: Eu estava num jogo entre Atlético-MG e Inter, pela Libertadores. Fiquei de avaliar a situação. Houve uma conversa com o meu clube, estava prestes a assinar um novo contrato, mas numa conversa de presidente para presidente eu pude ter a confirmação. Sempre deixei claro que um convite da CBF eu não tenho como dizer não. Eu tinha como projeto servir, poder contribuir de alguma forma. 
Ficou preocupado com o pouco tempo que teria para preparar o time para o Mundial?
Fiquei extremamente preocupado. Fiquei quase duas noites sem dormir. Poderia ter dado tudo errado, seria perfeitamente normal. Você está ali para poder construir um novo momento e acaba sendo avaliado em virtude de alguns resultados, não tem oportunidade de dar sequência. Você é avaliado única e exclusivamente pelo resultado. Todo mundo sabe a situação que foi, o pouco tempo de trabalho, uma convocação que eu não fiz, mas sempre deixei claro que qualquer convocação no Brasil tem jogadores de qualidade. Isso não me amedrontava. Isso, sim, vai um pouco contra aquilo que tenho como forma de pensar, mas depois a gente acredita que tudo é possível, que você, com o básico, pode dar rumo  a determinadas situações, pelos jogadores que nós temos. 
"Poderia ter dado tudo errado, seria perfeitamente normal. Você está ali para poder construir um novo momento e acaba sendo avaliado em virtude de alguns resultados, não tem oportunidade de dar sequência. Você é avaliado única e exclusivamente pelo resultado."
Temeu perder a chance na seleção num projeto deste tipo?
Tudo isso passa pela cabeça. Passam todas as possibilidades. Um dia ruim, mesmo você tendo todo um trabalho, te leva ao fracasso. Às vezes as coisas encaixam, começam a dar certo, cresce, e quando vai ver você quebrou o paradigma. Futebol é bacana por isso, tem duas situações. Resolvi acreditar. Era uma oportunidade, e não se diz não para uma chance na seleção brasileira. 
Você se surpreendeu com os jogadores?
Foi uma satisfação ver um grupo extremamente focado. São meninos jovens, que sabem onde querem chegar. Foram pressionados por tudo que ocorreu anteriormente,  por coisas que eles nem participaram, em relação à Copa do Mundo. Pegaram muito pesado com a base no Brasil. Precisamos melhorar muito, avançar, rever alguns conceitos, mas eu discordo quando o foco é muito voltado para a base. O microfone nunca está voltado para a base. Só nos compete trabalhar e dar uma resposta, não só ganhando. Achamos que só ganhar é importante, mas a base vai além do ganhar. Temos que trabalhar e dar cada vez mais qualidade para que o futebol avance. Acho que a gente precisa repensar o futebol, mas de uma forma geral.  


Rogério Micale treino Brasil sub-20 (Foto: Felipe Schmidt)
Técnico orienta jogadores com quadro tático (Foto: Felipe Schmidt) 

Como foi para dar seu jeito à seleção?
Eu tenho uma forma de fazer futebol em que acredito. Tenho um conceito claro na minha cabeça. Dentro das características, tentei colocar esta forma, e foi bem aceita. Tive a compreensão dos atletas. Falhas acontecem, erros vão acontecer, mas a capacidade de assimilação cognitiva desse grupo foi muito boa. Foi acima do esperado. 
E qual é essa forma de jogar do Micale? Como você acha que é a forma ideal do futebol brasileiro?
Eu gosto de jogar futebol bonito, de futebol bem jogado, tentando buscar o gol a todo momento, ter a leitura do jogo, levar os atletas a ter a leitura de jogo, saber a melhor situação para cada jogada. Que eles não sejam simplesmente automatizados, robotizados, mas saibam escolher. É função do treinador conduzi-los a esse entendimento. Dentro da responsabilidade que o novo momento requer, que é jogar como equipe, trazer o individual para o conjunto. Com certeza nossos atletas são capazes de assimilar isso. E não fazemos por quê? Porque não sabemos, porque não queremos, porque já estamos acostumados com o que já temos, porque já fomos cinco vezes campeões mundiais? Não podemos jogar na lata do lixo tudo que o Brasil produziu até hoje. Precisamos agregar conhecimento, novos conceitos, mas não abdicar totalmente da essência do bom futebol brasileiro. Eu não concordo com você querer “europeizar” o futebol brasileiro. Vamos extrair o que eles têm de melhor, mas não vamos abandonar o que o nosso futebol tem como essência. A gente não pode cair nessa armadilha. 
"Eu não concordo com você querer “europeizar” o futebol brasileiro. Vamos extrair o que eles têm de melhor, mas não vamos abandonar o que o nosso futebol tem como essência. A gente não pode cair nessa armadilha."
Virou moda técnico viajar para a Europa e dizer que estudou. O que você acha disso? Você se considera estudioso? Como você estuda?
Eu procuro absorver conhecimento, me informar de tudo o que acontece no mundo. Venho há nove anos jogar contra as grandes escolas europeias. A gente vê que tem muito a agregar, mas não acredito que a gente está tão atrás quanto é pregado no Brasil. Eu estudo errando. Errei muito, demais. Dentro dos erros você vai crescendo se souber extrair coisas boas daquilo que faz de errado. Acredito também que a teoria tem que estar atrelada à prática. Há uma guerra muito forte entre o ex-jogador e o acadêmico, mas eles são complementares, podem andar juntos. 
Você errou muito neste Mundial?
Errei. Errei. Errei. Talvez acho que não tanto, porque não tive tanto tempo, mas eu erro todo jogo.  


Rogério Micale Erasmo Damiani Brasil sub-20 (Foto: Felipe Schmidt)
Micale conversa com Erasmo Damiani, coordenador da base, durante treino (Foto: Felipe Schmidt) 

Qual foi o maior erro?
São momentos de dentro da partida, em que estão claras determinadas situações em relação a variações táticas que usam muito contra sul-americanos. Acaba passando despercebido, quando você repassa o jogo, enxerga e quer se matar porque não viu isso na hora. Eu me cobro muito em relação a isso, porque me preparei demais para poder errar o menos possível. Mas acredito que, por todas as circunstâncias, o papel está sendo bem realizado. Tem mais um jogo, mas já mostramos algo novo. Acho que podemos fazer um novo momento no nosso país. É difícil, porque internamente sabemos que o que vale mesmo é ganhar. O foco está no resultado. 
Contra o Uruguai vocês fizeram um bom jogo e poderiam ter sido eliminados nos pênaltis, e você disse que seria um processo que não seria concluído. Essa prática de julgar o resultado e não o desempenho te incomoda?
Incomoda profundamente. Porque as pessoas têm que ser avaliadas pelo dia-a-dia. Em qualquer área você requer um tempo de amadurecimento naquilo que está fazendo para conseguir emplacar o trabalho. Nosso trabalho naquele jogo contra o Uruguai foi fantástico, mas se perdemos nos pênaltis seríamos avaliados porque saímos nas oitavas. Em contrapartida, aconteceu o contrário contra Portugal. Falei que Portugal jogou melhor que a gente. As pessoas têm que ter mais frieza nas avaliações se quiserem chegar em algo maior e melhor. Não é uma derrota como a de Portugal que pode dizer se aquele trabalho é bom.  


Rogério Micale Brasil sub-20 (Foto: Felipe Schmidt)Treinador defende planejamento no futebol brasileiro (Foto: Felipe Schmidt)
Você teme que, se perder a final, o trabalho não seja bem avaliado?
O temor é pelo trabalho, não pelo resultado. Queremos ganhar, é uma marca muito importante para nós. É o carimbo de que o trabalho está bom, foi bem realizado. 
Mas se perder não é um carimbo de que o trabalho foi ruim...
Então. É isso que a gente não sabe avaliar. O não cumprimento da expectativa das pessoas torna o trabalho ruim. Para mim, é um trabalho extremamente positivo até aqui. Quero muito ser campeão, acho que esses jogadores merecem, por tudo que passaram. Estou muito consciente daquilo que estou fazendo. Acredito que não teria um impacto negativo uma derrota, mas não posso dizer o mesmo de forma geral. 
Pelas circunstâncias da preparação, chegar à final é um milagre?
Seria paradoxal falar no contrário, porque acredito em trabalho, em manutenção de grupo, em permanência de treinador, mas essa campanha é totalmente o contrário. Talvez eu esteja aqui fazendo um desserviço a tudo aquilo que prego. Você prega tudo isso aí e chega num Mundial com 20 dias para treinar, não conhece o grupo, e chega numa final, podendo ser campeão.
Você pensa em ir para um clube profissional ou quer se manter na base?
Eu trabalho na base, sou um técnico de base, procuro fazer meu trabalho da melhor forma possível. Agora, me preparei para um dia dirigir uma equipe profissional. Porque vou dar voz aos treinadores de base. A gente só vê oportunidade de ser valorizado financeiramente quando assume equipes principais. O que move os treinadores de base é ganhar campeonatos para ser valorizado e ter uma oportunidade profissional e valorização financeira. Isso atrapalha a base, porque mistura ganhar com revelar. Isso está junto, mas você nunca pode deixar o foco só em ganhar. Você trabalha com uma equipe extremamente maturada, monta uma equipe dessa para ganhar título, abrindo mão de um talento que não está no processo final porque está interessado no título, quer ter exposição individualmente. Tem formas de ganhar. Muitas vezes você ganha e não consegue colocar um jogador no profissional. Aquele título foi totalmente inútil e estéril, não produziu nada.  



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