O Natal batia na porta de muitos pelo mundo. Na de Silas, ninguém chegava perto. Não podiam. Era dezembro de 2014, e o atacante, sozinho, passaria em um hospital de Piracicaba, interior de São Paulo, a pior noite de sua vida. O desejo de disputar pela primeira vez um Campeonato Paulista deu lugar a um diagnóstico devastador em exames de rotina feitos pelo Capivariano:leucemia linfoide aguda. Pelo menos um ano longe do esporte. Internação às pressas, sob risco de contaminação e, no pior dos casos, morte. A baixa imunidade o obrigou a ficar em um quarto isolado, sem a família. Ali, Silas sentiu o baque. "Por que eu?", pensou. E chorou.
Quase um ano se passou, assim como tantas coisas na vida deste homem de 28 anos. Conviveu com enjoos, cabelos perdidos, indisposições, oito sessões de quimioterapia, falta de apetite, dúvidas não respondidas. Viu companheiros na luta contra a doença ficarem pelo caminho. Chorou uma dúzia de vezes. Questionou se era possível passar por tudo isso e ser o mesmo de antes. Claro que não era.
Nesse tempo, Silas também (re)descobriu coisas alegres. O conforto dos familiares, o amor da namorada, o apoio de uma cidade inteira, o sabor da cura. Hoje, o cabeludo Silas não é mais o mesmo. Ele está melhor. Mais forte. Nada referente à massa corporal – ele continua aquele magricelo que, com a camisa 9 às costas, fez um punhado de gols por aí. Psicologicamente, é uma rocha. À procura da felicidade que aquela notícia de 2014 lhe tirou. E ansioso por tudo que a doença adiou por todo esse tempo.
Esse natal vai valer por dois"
Silas
– O Natal do ano passado foi o pior da minha vida. Passar no hospital o início de um diagnóstico tão crítico e tão duro. Receber uma notícia de leucemia, sendo que estava bem de saúde nos dias anteriores. Longe da família, tudo isso. Foi a pior notícia que eu poderia receber. Você se sente um nada, se pergunta por que está vivendo. Esse ano vai ser diferente. Quero voltar a jogar, aproveitar a companhia da minha família, celebrar a recuperação. Tenho certeza de que esse Natal que está para chegar vai valer por dois – festeja.
DIAS DE SOLIDÃO
O Natal com sabor dobrado é até pouco pelo que Silas vivenciou neste intervalo de tempo. Foi forçado a interromper a profissão, aquilo que mais gostava de fazer, por uma fatalidade no meio do caminho. Viu-se diante de uma doença grave – curável, é verdade, mas só depois de muito sofrimento. Por meses, abandonou a alcunha de atacante. Virou paciente.
Atacante em momentos de descontração durante treinos com bola, mas sem esconder a alegria
– Foi passado um trator em cima dele – diz o doutor Hugo Alexandro Alves Rodrigues, médico responsável pelo Capivariano e que acompanha o caso desde o início.
– É um baque. Infelizmente tive a notícia, uma das mais tristes da minha vida. Foi a que me pegou de surpresa. Não esperava algo dessa proporção. Perguntei logo se tinha como tratar, se tinha cura. Se não houvesse, ficaria difícil aceitar – recorda Silas.
Impossível esquecer como tudo começou. Era início de pré-temporada no Capivariano, campeão da Série A2 e promovido à elite do Paulistão. Silas, artilheiro da campanha do acesso meses antes, tinha a cada dia mais dificuldade de acompanhar o ritmo dos treinos. Quase sempre acabava as atividades pálido, sem disfarçar o cansaço. A postura deixou Ivan Baitello, treinador a quem tinham feito muita propaganda positiva do atacante, irritado.
– Me falaram que era um leão de treinos! E agora não tira a mão do joelho – esbravejou, entre alguns palavrões impublicáveis, o treinador do Capivariano.
Silas, sem forças nem para reagir à bronca na frente de todo o elenco, apenas pedia desculpas. Mas a condição física do jogador despertou atenção do doutor Hugo. Os atletas, a partir disso, foram submetidos a exames de sangue. Da desconfiança de que algo estava errado até o diagnóstico de leucemia e internação, foi uma semana.
– Sentia um cansaço além do normal perto dos outros atletas, uma tontura, e o médico começou a desconfiar. Pediu exame de sangue para todos. Eu estava pálido após os treinos, mas não tinha roxo, nem ferida na pele. Se não tivessem feito o exame, era capaz de morrer em casa, porque não sabia que estava doente – diz o atacante.
Assim começou a rotina diferente de Silas. Internou-se pela primeira vez no dia 20 e ficou até o ano-novo, quando, mesmo sem forças, recebeu alta para passar a data com os familiares. Voltou periodicamente ao Hospital de Fornecedores de Cana, em Piracicaba. Foram oito internações durante o tratamento, todas supervisionadas pela família, uma equipe de médicos e pessoas ligadas ao clube. São tantos momentos, a maioria tristes, que Silas nem gosta de relembrá-los.
RESPINGOS DE ESPERANÇA
Durante o bate-papo com a reportagem, o atacante conta histórias quase que superficialmente, como se cada palavra que saísse de sua boca o fizesse passar por tudo novamente. Uma dor que só ele sente. A lembrança, em vez de ajudá-lo, alimenta algo que gostaria de esquecer. Nas internações, Silas dividiu quarto com dezenas de pessoas com a mesma doença. Três não tiveram força para sobreviver.
Pais acompanharam Silas em todos os momentos de dificuldade com a doença (Foto: Arquivo pessoal)
– O Silas aguentou muito bem, até por ser atleta. Se fosse um indivíduo comum, sem preparação física, era possível que a história dele fosse outra, bem mais negativa – garante o médico do Capivariano.
Em casa, aprendeu a conviver com enjoos rotineiros, a magreza acentuada, o tom amarelado da pele, a falta de força constante. Era a consequência de uma doença que chegara silenciosa em sua vida. Mas é fato que, por mais que a leucemia traga em si um aspecto doloroso de solidão, Silas não pode reclamar da falta de apoio. Tirando as primeiras noites, como na semana do Natal, o jogador teve sempre alguém com quem dividir o problema.
Os pais Ivan e Raimunda, que moram no interior de Pernambuco, ficaram meses em Capivari para cuidar do filho. Simone, a namorada, deu a mesma proporção de carinho. O amigo Douglas, então goleiro do Capivariano e hoje perto de acertar com o Corinthians, raspou a cabeça em homenagem ao companheiro – ele viveu história parecida, ao superar um tumor e voltar a jogar anos depois, normalmente. Quem também aderiu à careca por causa de Silas foi Gabriel Brandolin, garoto de seis anos e torcedor do clube.
Atacante perdeu os cabelos e teve apoio de pessoas queridas e até desconhecidos (Foto: Arquivo pessoal)
– Ele viu uma foto do Douglas com o Silas. A partir do momento em que viu, falou que queria raspar também, queria fazer uma homenagem. Eu não queria, sabe, mas ele disse: "Mãe, eu quero". Ficou umas duas semanas atormentando meu marido para ir cortar o cabelo. Fiquei bastante emocionada, porque é uma atitude que ninguém influenciou – comentou Natália Brandolin, a mãe de Gabriel.
Lembrar disso quase arranca lágrimas de Silas. Recuperado na parte física e psicológica, o rapaz buscou exemplos no esporte para tirar forças. Achou um caso na Inglaterra em que um jogador argentino se curou da leucemia e voltou aos campos. Tentou contato com Narciso, ex-volante do Santos e hoje técnico, que passou por isso nos anos 2000. Exemplos que lhe deram mais força.
– Muita gente vinha falar. Pesquisa isso, pesquisa aquilo. Sempre me perguntei se voltaria a jogar em alto nível. Foi o que eu mais pensei. Não vou mentir para ninguém. Foi o que mais me perguntei, o que mais me pergunto até hoje, mesmo treinando, fazendo tudo que não conseguia fazer antes. Essa pergunta fica sempre no ar. Seria uma notícia ruim, até pior que a doença, de ter que encerrar a carreira precocemente.
ANO NOVO, VIDA NOVA
Silas está perto da sonhada recompensa. As internações e os meses fora do futebol parecem com os dias contados. Há três meses, realiza atividades aeróbicas supervisionadas pela comissão técnica do Capivariano. Está à espera de um exame definitivo em Piracicaba, feito pela equipe de oncologia do doutor André Lourenço, para praticar esportes sem nenhuma restrição. Os médicos ainda são cautelosos, mas sonham ver o paciente de novo em campo.
– A etapa mais delicada já passou, mas é cedo para dizer em termos de porcentagem. Vai depender muito da resposta do organismo dele. Não dá para colocar em números ainda. Estamos todos esperançosos que o resultado seja muito positivo. Ele está liberado para esporte, mas não para contato físico, porque as plaquetas ainda oscilam muito. Mas o Silas está praticamente curado. Se por acaso ele não voltar a jogar futebol, ele ganhou na loteria em termos de saúde – diz o doutor Hugo, médico do Capivariano.
A ansiedade para reencontrar a bola é grande. Em casa, Silas acaricia uma réplica da Gorduchinha, a bola oficial do Paulistão de 2015, como se ela fosse viva. A caminho da sede do Capivariano, parece um garoto em início de carreira. Ele treina na companhia do time sub-20, que se prepara para a Copa São Paulo de Juniores, em janeiro. Pega ônibus com a molecada, participa da roda de bobinho, entra nas brincadeiras. Tudo para ficar mais perto do futebol.
Silas posa com a futura noiva (Foto: Arquivo pessoal)
Neste momento da vida, Silas une momentos que passou por todos os cantos. Em sua residência, os quadros e fotos com a camisa do Capivariano convivem com hábitos novos. Mensagens motivacionais estão espalhadas pelas paredes, bem como recipientes com álcool gel e fotos das pessoas mais importantes de sua vida.
Uma delas ganhará ainda mais espaço em breve. Evangélico, Silas prepara o noivado com Simone. A expectativa é que o casamento aconteça logo e os dois iniciem a vida conjugal em Capivari, na mesma casa que acompanhou os momentos de glória do atacante em campo, que o viu cair, se levantar e agora será palco de mais uma vitória. Uma vitória que vale bem mais do que três pontos. Se dizem que jogador de futebol morre duas vezes – uma quando aposenta e a outra de verdade –, Silas pode bater no peito e dizer que nasceu duas.
– Só de já estar treinando, fazendo atividades mais fortes como atleta, é uma vitória. Sei a gravidade dessa doença. Tem gente que passa dois ou três anos e não consegue fazer nenhum tipo de esforço. Sei que vou ter dificuldade no início, mas quero aproveitar cada dia. Nem sei qual vai ser a minha reação quando entrar em campo novamente, ainda mais se fizer um gol. A partir daí, vai ser tudo diferente, uma outra situação, só de coisas boas.
Varjota Esportes - Ce. / Globoesporte.
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